Homem X Natureza

A PREDATÓRIA "PEGADA" DO HOMEM NA TERRA.

Nova revolução dos bichos. A onda dos estudos animais


RESUMO
 






Entre direito, crítica literária, antropologia e outras disciplinas, ganha corpo um novo campo de pesquisas: os estudos animais, que põem em questão a superioridade humana e reconhecem tanto uma "cultura" animal como a animalidade do homem em livros, congressos e militância política, não sem opositores.
 


ALCINO LEITE NETO

"NÃO ATIRE O PAU NO GATO/ porque isso não se faz/ o gatinho é nosso amigo/ não devemos maltratar os animais..." É assim um trecho do "Rap dos Animais", que consta no site do Instituto Abolicionista Animal, da Bahia, presidido pelo promotor de Justiça e professor de direito Heron Santana.
Em 2005, Santana liderou um pedido de habeas corpus -garantia legal reservada aos seres humanos- em favor da chimpanzé Suíça, a fim de libertá-la do zoológico de Salvador e transferi-la para uma reserva de primatas em Sorocaba (SP). Suíça, porém, morreu dias antes de o caso, inédito no país, ter sido julgado.
Reivindicações similares ocorreram em seguida no Brasil, sem sucesso. No final do ano passado, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recusou um pedido de habeas corpus feito por entidades protetoras de animais para libertar o macaco Jimmy do zoo de Niterói. O relator do processo justificou: o habeas corpus não é o instrumento jurídico certo para proteger o primata.

BENS SEMOVENTES Os bichos não estão sob os cuidados das mesmas leis reservadas às pessoas. No Código Civil, são classificados como "bens semoventes", ou seja, uma propriedade do homem dotada de movimento próprio. É a Lei de Crimes Ambientais (nº 9.605, de 1998) que garante proteção e segurança aos animais e prevê punição aos que os maltratem, mutilem ou envenenem, entre outros delitos.
A Constituição também veda práticas que levem à extinção de espécies ou "submetam os animais à crueldade" (Cap. VI, art. 225, § 1º, inciso VII).
Pedir habeas corpus para um animal é um modo de desafiar os limites do sistema jurídico e também uma forma de protesto político. A intenção é parecida à do americano Gary Francione, professor de direito que é um dos principais defensores da causa do abolicionismo dos bichos. Um de seus livros, de 2008, tem como título "Animal as a Person" (o animal como pessoa).

TRADIÇÃO Ao reivindicar que animais -ao menos os primatas superiores- possam usufruir de um direito reservado às pessoas, esses grupos pretendem colocar em xeque uma tradição filosófica e cultural de séculos, que o direito apenas formaliza.
Segundo essa tradição, os homens se definem por oposição aos animais, sendo estes inferiores àqueles por estarem desprovidos da razão, da palavra e da preocupação recíproca pelos seres humanos.
Para René Descartes (1596-1650), por exemplo, os bichos não passam de autômatos, já que, desprovidos de alma, não dispõem senão da pura mecânica do corpo.
Para Kant (1724-1804) -cujo pensamento exerceu tanta influência sobre a jurisprudência-, já que animais são seres desprovidos de julgamento, os homens não têm nenhum dever em relação a eles, a não ser um dever indireto com respeito à própria humanidade.
O pensamento ocidental seguiu praticamente na mesma toada até Heidegger e Levinas, no século 20. Raros foram os pensadores que, como Jeremy Bentham (1748-1832), entenderam que os animais deveriam ser dotados de direitos. Para o filósofo britânico, a defesa dos bichos se justifica por estarem eles, assim como os homens, sujeitos ao sofrimento.
Na vida prática, a presunção de superioridade do homem resultou na perseguição desenfreada aos animais, quando não na extinção de espécies, na "escravização" dos bichos, no aprisionamento, na morte em massa e na sua mercantilização para fins alimentares e de entretenimento doméstico.

ÉTICA ANIMAL É contra essa visão utilitária e predadora que surgiram, nas últimas décadas, filósofos e juristas dedicados a discutir a criação de uma "ética animal" e reivindicar um arcabouço jurídico que dote os bichos de direitos.
Ao mesmo tempo, surgiram grupos de proteção aos animais, alguns constituídos em organizações políticas, por vezes ferozmente militantes, como o Peta (People for the Ethical Treatment of Animals), criado em 1980, ou a ALF (Animal Liberation Front), fundada nos anos 70. Foi o braço brasileiro da ALF o responsável pela depredação, em 2005, do Instituto de Biociências da USP, em protesto contra o uso de bichos em pesquisas científicas.
No âmbito acadêmico, da mesma maneira que no passado recente as universidades se abriram para os estudos da cultura na ótica das diferenças raciais e sexuais, vem se desenvolvendo uma nova área de pesquisas chamada "estudos animais".
As investigações neste campo são complexas e convocam um grande número de disciplinas, como a biologia, a filosofia, o direito e a antropologia, além da literatura e de outras artes.
As pesquisas já encontraram terreno fértil no Brasil. No início de maio, foi realizado em Belo Horizonte o colóquio internacional "Animais, Animalidade e os Limites do Humano", que promoveu mais de 30 palestras e mesas-redondas e trouxe ao país alguns ilustres pesquisadores da nova disciplina. Entre eles, o francês Dominique Lestel, da École Normale Supérieure de Paris, o britânico Tom Tyler, da Oxford Brookes University, e o americano Randy Malamud, da Georgia State University.
O colóquio foi coordenado pela pesquisadora Maria Esther Maciel, professora de teoria da literatura, e por Julio Jeha, professor de literaturas de língua inglesa, ambos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
O encontro foi considerado um pré-evento para a segunda Minding Animals Conference, que acontecerá em 2012, no Instituto de Ética da Universidade de Utrecht (Holanda). A Minding Animals Internacional (MAI) é uma associação internacional que tem entre seus patronos o sul-africano J.M. Coetzee (Nobel de Literatura em 2003) e a cientista britânica Jane Goodall, famosa por suas pesquisas com chimpanzés.
Foi Maria Esther quem também organizou o livro "Pensar/Escrever o Animal: Ensaios de Zoopoética e Biopolítica" [422 págs., R$ 39], recém-publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (Edufsc). Com 19 ensaios de vários autores, brasileiros e estrangeiros, o livro é uma das primeiras grandes iniciativas editoriais no país no campo dos estudos animais.
A primeira parte de "Pensar/Escrever o Animal" traz ensaios de viés mais filosófico, como os de Benedito Nunes, Dominique Lestel e Tom Tyler. Entretanto, o foco principal do livro (como foi também o do colóquio em Belo Horizonte) é a análise do modo como a literatura, os mitos, as fábulas e as artes abordam os animais e a própria animalidade do homem.
São examinados autores como Kafka, Coetzee, Clarice Lispector, Borges e Patricia Highsmith. As análises são de Márcio Seligman-Silva, Evando Nascimento, Raul Antelo, Eneida Maria de Souza, Jens Andermann e Lucile Desblache, entre outros.
A lista de escritores analisados inclui o curioso caso da brasileira Regina Rheda, cujo pouco conhecido "Humana Festa" (Record) seria o "primeiro romance centrado no veganismo no mundo", segundo a professora Alexandra Isfahani-Hammond, da Universidade da Califórnia em San Diego.
Claramente militante, o livro narra as disputas econômicas e os dilemas morais em torno da criação de animais numa fazenda no interior de São Paulo. O veganismo (que deriva da palavra "vegetarianismo") é um movimento que defende os direitos dos bichos e a supressão de todo produto de origem animal -na alimentação, nas roupas, nos medicamentos etc.

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